(Foto: Marco Aurélio Martins)
(Revista Muito, jornal A Tarde, 28/02/2010)
“Quando eu morava em Itaparica, me dava pena ver aquela geração de jovens fortes, dispostos, boa gente, bem formados, com duas opções de futuro: ou migrar de lá, e nunca mais aparecer, ou cair na cachaça, no desemprego, na saúde precária já aos quarenta anos. Ficam uns cacos. As moças, tão bonitas, cada princesa que você vê assim aos doze, treze, quatorze anos, você chega uns cinco anos mais tarde já encontra aquela velhota de quarenta e cinco. Já sem dente, por causa da gravidez precoce, aquela tristeza que a miséria produz. Eu então chamei o pessoal e falei: ´aqui tem uma certa infra-estrutura, vamos bolar um calendário para a ilha? Por exemplo, um festival de pesca de peixe miúdo; em setembro, que é época de vento, empinar arraia, fazer um festival disso… Um festival de música qualquer, uma onda.. Inventar coisas, bolar…´. Rapaz, foi um negócio! Criaram comissão, já queriam botar jeton pra mim (algum dinheiro), eu disse, ´eu não quero jeton nenhum, eu não sou de comissão, ainda mais vindo do imposto pago pelo povo, que é miserável…´ (risos). Foi tal confusão e apresentação de planos. As pessoas entravam, cada qual com seu ´peixe´ pra vender. As pessoas falavam e não se ouviam, esperavam a própria vez – mesmo que fosse pra repetir o que foi dito na fala anterior (risos). Acabou que parte da Câmara Municipal de lá se reuniu e, se pudesse revogar um registro civil, eles revogavam o meu. Começaram a se referir a um bando de ´forasteiros´. Aí mandei todo mundo pra puta que pariu: ´vocês vão ficar na merda, mesmo, se quiserem´. Porque lá dizem que eu ´nunca fiz nada pela ilha´. Quando eu fui escrever para O Globo, pela primeira vez, já há uns vinte anos, escrevi logo mencionando Itaparica. Aí vieram me lembrar que eu estava escrevendo para um jornal carioca, que não botasse ´esse negócio de Itaparica, ninguém nunca ouviu falar, fica melhor direcionar sua crônica para o público carioca e tal…´. Deram a mim uma orientação amigável à qual eu não dei a menor importância. E Itaparica hoje, ao ser mencionada, não precisa que ninguém mais explique que é uma ilha, antigamente tinha que botar: ´Itaparica (ilha localizada na Baía de Todos-os-Santos)´. Hoje não precisa. No entanto, dizem que eu nunca fiz ´nada pela Ilha´. É igual dizer que Dorival Caymmi, porque nunca fundou um asilo com o próprio nome, nunca fez nada pela Bahia” (Notícias da Bahia, Feira de Santana, maio de 1999)
O depoimento acima é do escritor João Ubaldo Ribeiro, 69, que mora no Rio desde 1992, no apartamento que já foi de Caetano Veloso. A reportagem da Muito #100, que está nas bancas neste domingo (28/01), conta que João Ubaldo gosta de curtir o verão no lugar onde nasceu: a casa do avô na ilha de Itaparica, onde morou por quase oito anos – já escritor reconhecido, na década de 80.
Lá, reencontra velhos conhecidos, descansa um pouco e repete um certo ritual diário: manhãs no mercado do peixe e almoços no Largo da Quitanda. Fica, em tese, livre do assédio da grande imprensa.
Este ano, passou um mês em Itaparica, entre as primeiras semanas de janeiro e de fevereiro. Não foram férias totalmente calmas, já que Ubaldo não se aquietou: levantou polêmica ao se posicionar contra a ponte entre Salvador e Itaparica. A obra foi anunciada pelo governo do Estado sob o título de “Sistema Viário Oeste”, no começo de janeiro.
Se a postura de João Ubaldo ganhou o apoio de gente famosa e influente no meio artístico, como Chico Buarque e Cacá Diegues (veja manifesto online), ao mesmo tempo lhe rendeu críticas locais, nos campo das forças políticas e econômicas da Bahia.
O irmão mais novo, Manuel Ribeiro Filho, é diretor da construtora OAS e já tem estudos e projetos em desenvolvimento para a ponte. O governador Jacques Wagner lançou em janeiro um convite público para que pessoas físicas e jurídicas manifestem interesse em realizar a obra. A OAS já está no páreo. Para o irmão caçula do escritor, é natural que ambos pensem diferente, apesar de terem tido a mesma formação.
“Nós tivemos uma discussão bastante cordial via email”, conta Ribeiro Filho. “Minha relação com ele é bastante cordial. Cada qual no seu ponto de vista. Eu sou engenheiro, sou executivo, ele é intelectual. Ele é bem mais velho do que eu, então eu convivi pouco, na casa paterna, com ele. Então, cada qual tem sua vida. Claro, temos relação totalmente cordial, mas cada um pensa de uma forma. E eu acho que é muito natural que as pessoas pensem diferente”.
Na sede da OAS, na Graça, dois Mercedes-Benz de luxo repousam na garagem externa, aos cuidados de seguranças particulares, enquanto em uma sala de reuniões o diretor da construtora para a Bahia, Sergipe e Alagoas pega o celular pessoal e mostra para a reportagem de A TARDE que enviou um email ao irmão escritor, em cumprimento ao aniversário.
“Mandei no dia 23 de janeiro, em pleno quebra-pau: ‘Meu irmão, parabéns. Desejo-lhe muita saúde, sucesso, paz e alegria. Espero que tenha havido alvorada com foguetes de flecha. Boa festa. Abraço do irmão caçula e família.’ Toda a pessoa importante quando fazia aniversário, tinha alvorada, com foguetes de flecha”, contou.
A resposta de Ubaldo foi: “Muito obrigado, meu irmão. A festa foi boa. Muitos beijos do irmão mais velho JU”. Dez anos mais novo, Manuel guarda o telefone e conclui: “Isso não impede que ele fale cobras e lagartos, mas é do próprio jogo democrático”.
O vão central da ponte proposta pela OAS teria 500 metros de comprimento por 80 de altura. “Essa é nossa ideia. Fizemos nosso estudo sem autorização nenhuma do Estado”, diz o engenheiro. “Mas eu não iria oferecer o Estado para estudar sem ter certeza de que haveria possibilidade de viabilidade”.
No dia 26 de janeiro de 2009, ele entregou, assinando como diretor da OAS, uma petição à Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado, pedindo autorização para fazer os estudos. O pedido foi indeferido. Um ano depois, o Estado abriu o “convite de manifestação de interesse”.
O chamado “Sistema Viário Oeste” inclui a duplicação da ponte do Funil e outros trechos rodoviários do Recôncavo, além de obras federais de extensão do km 0 da BR 242 para o porto de Salvador. Depois de 14 de março, prazo final para empresas interessadas responderem ao convite de manifestação de interesse, o governador vai definir, por decreto, uma comissão que vai escolher a melhor proposta de estudos.
Mas o secretário de planejamento, Walter Pinheiro, adiantou para A TARDE, em janeiro, que não há meios da fase licitatória da obra iniciar em 2010, por ser este um ano eleitoral.
Bem no auge da discussão, trocamos umas palavrinhas com o filho mais famoso de Itaparica. A rápida conversa, transcrita abaixo, elucida um pouco da relação do escritor com a ilha. A entrevista foi concedida às 17h30 do dia 23 de janeiro, na sombra do quintal da casa que era do avô. Coisa de uns 45 minutos antes, 69 anos atrás, ele estaria nascendo, de parto difícil, naquela mesma casa.
Muito – Há personagens nas suas crônicas e romances que são pessoas de verdade, daqui de Itaparica, como Espanha, Grande, Osmar, Zecamunista e Jacob Branco… Como é que isso funciona?
João Ubaldo – Às vezes conto o que aconteceu, às vezes mudo. Mas só brinco porque são meus amigos. Com quem eu não gosto, não brinco – a não ser que seja para denunciar. No fundo, é a brincadeira de botar o nome deles no jornal.
Muito – Mas alguns deles não conhecem sua obra. Isso te preocupa?
João Ubaldo – Não. Eu sei que a maioria não lê… (pausa). Mas, Zeca (Zecamunista), não. Zeca é um homem de grande valor, não só profissionalmente, como um homem de cultura.
Muito – Quem é Gugu Galo Ruço e Beto Atlântico, citados em crônicas recentes para o jornal A TARDE?
João Ubaldo – Gugu Galo Ruço existe, estava aí… É um amigo meu, acho que eu trabalha com imóveis, mas não mora aqui. Vem muito aqui. Beto Atlântico é dono do Mercadinho Atlântico, aqui de Itaparica.
Muito – No ano passado, você disse que ia retomar uns personagens de Miséria e Grandeza do Amor de Benedita e de Já Podeis da Pátria Filhos para voltar a falar mais do universo humano da ilha. Como está esse projeto?
João Ubaldo – É, eu disse. Mas não sei se vou fazer, não. Às vezes, eu penso nisso, mas não tenho certeza. Às vezes eu falo que vou escrever, mas isso não acontece nunca. Quero escrever mais histórias com eles.
Muito – Algum personagem de O Albatroz Azul é inspirado em uma pessoa real aqui de Itaparica?
João Ubaldo – Não, não. Eu nem uso essa palavra, “inspirado”. Mas, com certeza, deve parecer com algumas pessoas aqui de Itaparica. Porque se o personagem é verossímil, ele parece com alguém. Se é pão-duro, vai parecer com algum pão-duro que você conhece…
Muito – Ouvi hoje de uma de uma senhora que já tinha tomado uma cachacinha: “Hoje é aniversario de Itaparica!”
João Ubaldo – Hehehehehe… (rindo…)
Muito – Aí, alguém corrigiu: “Não, é aniversário de João Ubaldo!” E ela: “Ah, é? Mas é a mesma coisa!”
João Ubaldo – É uma maravilha isso! Eu fico contente de saber disso!
Muito – E é verdade. Mas, e as orelhas do prefeito de Itaparica? Andam meio queimadas, por aqui?
João Ubaldo – O que aconteceu com o Vicente foi que quando eu morava aqui e votava aqui, votei contra Vicente, isso é verdade. Mas já me oferecei para ajudar, não sei se ele se lembra; ajudar, fazer alguma coisa para movimentar a vida aqui. A única coisa que foi aproveitada, e mesmo assim por um amigo meu, foi o concurso de pesca de carapicun; mas eu não bolei para dar prêmio João Ubaldo! Bolei um calendário turístico, me ofereci para ajudar, fazer um festival aqui, quando tinha o Grande Hotel. Mas ninguém queria. Vicente acha que eu não gosto dele. Vicente é afilhado de meu avô, conheço ele desde pequeno.
Muito – Ontem (22/01) saiu seu artigo no jornal A TARDE, um manifesto contra a ponte para Itaparica. Que repercussões têm tido sua opinião?
João Ubaldo – Contra o interesse econômico, um artigo resolve muito pouco… (olha para a repórter em silêncio, fumando um cigarro).
Muito – No caso do Forte São Lourenço, quando fizeram e a zona de desmagnetização de navios, você também se manifestou contra. Adiantou alguma coisa?
João Ubaldo – Não adiantou nada. Quem veio aqui foi o almirante Blower, o então comandante do 2o. Distrito Naval. Ele veio em pessoa, com o oficialato dele. Me convidaram para almoçar. Foi uma grande deferência.
E um telefonema interrompeu a entrevista. “Vou precisar me ausentar um bocadinho”, pediu licença Ubaldo, e partiu para o interior da edificação. Logo depois, colocou uma camisa, aberta até o terceiro botão; sob os protestos da mulher, Berenice, voltou para dentro e colocou outra. Esperou Berenice fechar a casa. Então, foi com ela, a filha Emília e um casal de amigos para a Biblioteca Juracy Magalhães Jr., onde aconteceu a já tradicional homenagem pelo seu aniversário.
“Suponho que não tenho nenhuma razão em querer que Aracaju e Salvador ficassem como eram, mas comigo é assim, para mim nem uma, nem outra, são mais as minhas cidades. Só me sinto à vontade mesmo em Itaparica. Se fizerem uma ponte para Salvador, organizo uma brigada dinamitadora e vou à luta” (João Ubaldo para o Jornal da Bahia, em 1985)